O Conclave

1.

O que se passa num conclave? Quero dizer, que ambiente se vive lá dentro, entre os cardeais, os seus secretários, os padres e as freiras, o pessoal que prepara as refeições…

É aquela coisa grave e séria que todos supomos que é, uma reunião de gente que sabe que, para milhões de pessoas, as suas decisões serão coisa muito importante? Ou terá a fábula de Nanni Moretti em “Habemus Papam” algum fundo de verdade, e a farsa é rainha? Mas o que sabe Moretti, que afinal é um comunista?

Eu imagino mais facilmente um grupo de executivos engravatadinhos, do Banco Ambrosiano Veneto, a fazer contas sobre despesas, receitas, yelds bonds, enquanto os do Opus Dei conspiram, numa esquina esconsa ou numa rede social qualquer, contra o cardeal papabile de uma fação rival.

Lembrei-me disto porque o meu amigo Faria, visivelmente perturbado, me descreveu hoje de manhã um pesadelo que teve a noite passada.

Vou contar-vos o sonho, tentando recordar as suas próprias palavras, mas é claro que ele não me pode ouvir brincar com estas coisas. O Faria é um católico fervoroso e, embora seja homem muito bem humorado, há certas coisas que o tiram do sério. Peço-vos, por isso, a maior discrição.

2.

Estou no Vaticano, rodeado de altos dignitários da Igreja.

A certa altura, reparo que eu próprio sou um cardeal, porque alguém me segreda ao ouvido “Eminência, desta vez as suas hipóteses são muito grandes”. Volto-me, mas apenas avisto um vulto encolhido, afastando-se com passos rápidos. Sei que sou o cardeal Cunhambebe Anchieta, brasileiro de ascendência Tupi.

Leio, na página 3 do L’Osservatore Romano, que “talvez tenha chegado a hora de um Papa não europeu, vindo de um país do hemisfério sul, um representante das novas grandes nações católicas”. Estou convencido de que sou eu: mestiço, indígena, brasileiro. No meu íntimo, sei que o Espírito Santo já me apontou.

Mas assalta-me uma dúvida angustiante de cada vez que fixo os olhos grandes de Francis, o cardeal africano. Todo ele é tranquilidade, força. Será que é ele, e não eu, o escolhido?

Movo-me por entre homens vestidos de vermelho, de branco e de preto, com o coração oprimido. Escuto vozes que sussurram, surpreendo olhares oblíquos e vislumbro movimentos orgíacos por detrás das pesadas cortinas púrpura. Tudo se acelera à minha volta, mas eu consigo manter a calma e flutuo sobre as cabeças dos homens no salão. Tudo é contraditório e agitado, e apenas eu estou no ritmo normal.

Eu e Francis, rodeado por uma música suave que parece sair das suas palavras e por uma luz doce que parece sair da sua pele negra. A dúvida assalta-me. Ele quer o lugar que é meu por direito divino. Ele é forte e puro, enquanto eu carrego comigo o pecado da mestiçagem. Todos olham para ele e ninguém repara em mim. Exceto Francis, que me olha com os olhos brilhantes.

Entro em pânico.

3.

Acordo sobressaltado. Mas não acordo do pesadelo, acordo no pesadelo.

Estou deitado numa ampla cama de dossel, num quarto de teto alto e paredes de pedra e madeira cobertas de tapeçarias.

Tive uma revelação. O meu sangue tupi mostra-me o caminho. Como os meus antepassados faziam, tenho que destruir Francis e comê-lo, para que a sua força e a sua pureza passem a fazer parte de mim.

Saio do quarto com passos silenciosos sobre os tapetes macios. Amanhã, na sessão do conclave, as virtudes de Francis serão minhas. Os seus músculos, o seu espírito, a sua coragem, o seu rosto… tudo absorverei, seremos um só.

Vou parecer-me um pouco mais com Francis e esta mistura de sangues, esta miscigenação definitiva, criará o verdadeiro Escolhido, aquele que limpará a Igreja e trará uma Nova Era ao Mundo. Compreendo isto de forma muito clara.

Entro no quarto de Francis, sem acordar o guarda suíço, que dorme num banco de madeira junto à sua porta. Aproximo-me da cama, guiado na escuridão pela sua respiração ritmada e por uma estranha claridade que rodeia o seu corpo. Debruço-me e, aspirando o aroma intenso e exótico que dele emana, estendo as mãos trémulas para o seu pescoço.

Ele abre os olhos e volta o rosto para mim.

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